sexta-feira, 11 de julho de 2008

Hospitais, vida ou morte!

Por José Márcio Soares Leite, colaborador e acadêmico de medicina
Artigo publicado no jornal O Estado do Maranhão de 06/07/2008
O Banco Mundial e o Instituto Brasileiro para o Estudo e o Desenvolvimento do Setor de Saúde lançaram durante a Hospitalar 2008, o livro "Desempenho Hospitalar no Brasil: Em Busca da Excelência", de autoria de Gerard La Forgia, especialista em Saúde do Banco Mundial, e Bernard Couttolenc, da Interhealth Soluções em Saúde e da Universidade de São Paulo.

Para os autores, a rede hospitalar no Brasil é ineficiente, gasta mal os recursos, encarecendo os custos hospitalares. O professor Couttolec, afirma : “Está claro que, para o Sistema Único de Saúde-SUS cumprir o seu papel constitucional, ele precisa de mais dinheiro. Todos os recursos adicionais são bem-vindos, mas não adianta apenas ter recursos a mais. É preciso alocar melhor. Gastar bem o dinheiro. É preciso haver uma intervenção para melhora de qualidade”.
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Para que possa ser melhor entendida essa questão, diga-se que dos 7.426 hospitais brasileiros, apenas 56 detêm selo de qualidade. Na região Nordeste apenas três o possuem e na região Norte, não há um único hospital com certificação de qualidade.
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O livro mostra que, numa classificação de 0 a 1, sendo 1 o nível de eficiência mais alto encontrado, a média encontrada no Brasil, foi de 0,34%. Que os hospitais são muito caros e ineficientes em escala e produtividade. Que poderiam fazer muito mais com os recursos de que dispõem, citando como exemplo, a taxa média de ocupação de leitos custeados pelo SUS de 37%, com exceção obviamente dos hospitais que atendem urgência/emergência, que estão sempre superlotados.
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Os autores finalmente concluem que: “À medida que os custos na saúde subiram, cresceu a necessidade de maximizar a eficiência e o impacto obtido com os recursos disponíveis”, pois enquanto poucos hospitais constituem centros de excelência nacional, a maioria depende de financiamento público e ostenta padrões deficientes de qualidade”. Os hospitais que obtiveram melhor desempenho têm mais de 250 leitos, o que é preocupante, pois no Brasil somente 7% dos hospitais têm mais de 200 leitos. Essa afirmação dos autores de Desempenho Hospitalar no Brasil, vale tanto para os hospitais públicos quanto para os privados.

O modelo de atenção à saúde implantado no Brasil desde o Império, sempre foi assistencialista, curativista, voltado para o hospital ou hospitalocêntrico. Os hospitais são, portanto, o “centro nervoso” do sistema de saúde, respondendo por dois terços dos gastos do setor. Segundo a pesquisa publicada nesse livro, dos R$ 196 bilhões gastos com saúde em 2006, 67% foram destinados aos hospitais. A média recomendada pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico-OCDE é de 55%. Desse total, cerca de 30%, ou 10 bilhões, foram gastos em internações que não requeriam cuidados hospitalares.
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Nesse contexto, o livro tem três objetivos: contribuir para os esforços governamentais de desenvolvimento de uma estratégia de reforma do modelo hospitalar a médio prazo; identificar opções para aprimorar o desempenho de hospitais que atendam à população carente; e ajudar a construir consenso sobre a reforma hospitalar entre formuladores de políticas e principais gestores da saúde.
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O livro Desempenho Hospitalar no Brasil foi lançado em um momento oportuno, ou seja, em que estamos vivendo a mais grave crise de subfinanciamento do setor. E concordo com os autores, pois não basta aumentar pura e simplesmente os recursos da saúde, sendo necessário um aprimoramento da gestão e uma mudança no modelo de atenção à saúde vigente.
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As Leis Orgânicas da Saúde e as Normas Regulamentadoras do Ministério da Saúde, desde a década de 90 do século passado, preconizam um modelo de atenção à saúde integral, regionalizado, organizado por níveis de atenção primária, secundária e terciária, reservando, portanto, aos hospitais os atendimentos das patologias de maior complexidade e que exigem internação ou serviços de apoio diagnóstico de alta tecnologia. Na prática, contudo, continuou vigendo o antigo modelo hospitalocêntrico e para revertê-lo, na minha modesta concepção, só uma grande determinação política, por meio de um pacto técnico-político com a sociedade civil organizada.
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Caminhar em sentido contrário, creiam, não é lutar a favor da vida, mas da morte.

José Márcio Soares Leite, Acadêmico Médico. Professor MSc. Membro da AMM, do IHGM, da APLAC, da SBHM e da AMC.

terça-feira, 8 de julho de 2008

SUS - Transferir responsabilidade não é solução

(Matéria publicada na Folha de São Paulo, em 28 de junho de 2008)

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi pensado e construído por profissionais e movimentos populares da saúde para funcionar em rede, descentralizado, com atendimento desde um curativo a cirurgias de alto custo, da prevenção e controle de endemias ao acompanhamento porta a porta, em especial nas regiões de difícil acesso.

Mesmo sendo referência internacional, o SUS tem sofrido muitos ataques, principalmente daqueles que vêem na saúde pública mais um nicho de negócio lucrativo. É o caso do estado de São Paulo que há mais de 10 anos vem transferindo a gestão da saúde pública para entidades privadas, inclusive sem licitação, cadastradas como Organizações Sociais da Saúde (OSS), em prejuízo dos usuários que continuam em filas de espera para atendimento, conseqüência do sucateamento do setor público e das restrições do setor privado.

A principal justificativa dos que defendem a terceirização é a agilidade na compra de material e contratação de pessoal, burlando o que chamam de burocracia. Não entrando no mérito da questão, a legislação existe para coibir o mau uso do dinheiro público. Pode e deve ser aperfeiçoada.

Também se alega que com a terceirização o custo diminui. Será?

Os custos das OSS vêm crescendo ano a ano, mostrando que o problema não é o setor público mas da gestão. Os hospitais e serviços gerenciados por OSS decidem de forma independente o tipo e o número de atendimento prestado, ficando a população à mercê da oferta de vagas que essas entidades disponibilizam.

Em relatório da Comissão de Acompanhamento das Organizações Sociais em São Paulo de 2003 já se apontava a redução nos atendimentos de urgência e a lógica da gestão privada – a manutenção do equilíbrio financeiro. Desde 2005 jornais destacam a disparidade nos preços de um mesmo medicamento comprado pelas diversas OSS, chegando a variar em até 64%.

Em 2007, virou manchete a crise do INCOR. A Fundação Zerbini, entidade privada que administra o hospital, acumulou uma dívida de R$ 246 milhões, colocando em risco uma referência em cardiologia, construído e mantido com dinheiro público. Como solução, o governador José Serra restringiu a atuação da Fundação e assumiu a dívida, ou seja, dinheiro público financiando a má gestão privada.

Hoje, a terceirização vem sendo questionada também na justiça.

A terceirização do Hospital Luzia de Pinho Melo, de Mogi das Cruzes, é um exemplo. O Ministério Público do Trabalho ingressou com uma ação civil pública para anular o processo. Entre as argumentações estão violação da Constituição, que determina que nenhum servidor pode ser contratado sem concurso público; a quarteirização de serviços para uma entidade privada ligada à OSS gestora; irregularidades no pagamento de direitos trabalhistas.

Também está sob investigação o repasse de serviços laboratoriais de unidades da rede pública estadual de saúde para a iniciativa privada. A gestão dos serviços está sendo transferida para OSS que por sua vez quarteiriza os exames laboratoriais para empresas privadas.

Um dos tripés do Sistema Único de Saúde – o controle social – não é respeitado no estado. O Conselho Nacional de Saúde se posicionou contra as OSS e a terceirização da saúde. Essa deliberação também foi tomada pelo Conselho Estadual de Saúde. A participação e a fiscalização da sociedade na administração pública garantem a boa gestão. Mas precisa haver transparência no uso desse dinheiro. Isso não acontece na gestão das OSS.

Podemos alcançar uma saúde pública com qualidade. O SUS e suas várias instâncias deliberativas estudam, debatem e definem as diretrizes para serem implementadas nos âmbitos federal, estadual e municipal.

Hoje o SUS funciona ao custo de R$ 1,00 por pessoa e atende muita gente. Se investirmos mais, com certeza, chegaremos a uma saúde pública universal, integral e equânime para todos, promovendo o desenvolvimento sustentável do país que todos almejam. Não é necessário desmontar a rede de saúde pública, nem assistir epidemias e perdas de vida.

Dos hospitais que prestam serviços ao SUS em São Paulo 68% são privados. Portanto, se a gestão privada funcionasse melhor o atendimento hospitalar não teria os problemas que tem hoje. Tratar a saúde como negócio é ideológico e as vidas perdidas é falência na certa.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A ética escrita como despersonalização do tratamento médico

(A Moral vestida de Ética torna-se mais aceitável)

Por Manoel Guedes, colaborador e acadêmico de medicina

“... escutar colocando o ouvido no peito...”.
Hipócrates “de Moris” (400 a.C.).


"Há quatro meses a senhora CAB, de 46 anos, descobriu que precisava retirar um caroço do pescoço. Foi à policlínica, fez exames, cumpriu a burocracia. Ela foi internada nesse domingo (25). A cirurgia estava marcada na manhã de segunda-feira. Depois que ela recebeu a anestesia geral, o médico chegou para realizar a cirurgia. E descobriu que não havia luva. A cirurgia foi suspensa. O marido perdeu um dia de trabalho. E o efeito da anestesia passou cinco horas depois." (repórter local)
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É fato concreto que o código de ética, em certos pontos, não diz respeito à ética, e sim à moral, ao conjunto de normas impostas pela sociedade médica como um meio de coibir desvios de padrão que possam levar ao prejuízo do paciente. E isto é, na teoria, louvável. Contudo, se percebe na prática que algumas vezes se faz necessária certa personalização do ato médico, posto ser cada paciente diferente e repleto de peculiaridades que não o permite ser tratado na coletividade sem notável viés. E é esta personalização, onde tanto as ações médicas quanto éticas são postas em teste, o que realmente importa ao paciente.

O problema então reside em duas questões principais: (1) o código de ética não foi criado para sobreviver em situação de caos, e forçá-lo a isto é simplesmente inviável; e (2) a notável despersonalização do tratamento médico, que é, também, inaceitável.

É sabido que muitos médicos recém-formados trabalharão em hospitais que não disponibilizam nem o mínimo necessário a um atendimento digno, como luvas ou anestésicos, e se encontrarão num dilema ético (ou moral) em relação ao tratamento. Tratar ou não tratar? Pode parecer meio improvável ou mesmo fantasiosa a situação, mas em países africanos ou até em pequenas cidades do interior do Brasil há casos muito mais graves. Em horas como esta, onde nossa ética intrínseca nos diz o que deve ser feito, mas somos restritos pelo que é escrito, creio, deve-se pesar o bem e os malefícios possíveis e então, em caso favorável, iniciar o tratamento.

Sob este aspecto a "ética escrita" como um código do moral pode prejudicar o atendimento, visto que muitas vezes uma moralidade demasiada restringe o tratamento ao que é comum e, pois, “aceitável”, ao ponto tal de algumas vezes causar prejuízo ao paciente. É indubitável que certos desvios de padrão levam ao aprimoramento e evolução da medicina.

Convém ressaltar, porém, que em detrimento de em alguns casos causarem prejuízo, em outros este conjunto de normas salva vidas. O que afirmo é que, às vezes, não segui-lo à risca também às salva. Ou seja, não devemos fazer fogueira do Livro de Ética, mas este deve ser mais aberto à individualidade, pois nem todo médico, paciente e situação são iguais.

O fato é que nós, como médicos, devemos sempre nos preocupar com o bem de quem cuidamos de maneira individual e ética, não apenas moral. Um conjunto entre os três seria o correto, porém percebo, infelizmente, que esta tente a sobrepujar as outras duas, as mais importantes ao meu parecer. E isto é lamentável... É lamentável também saber que se faz necessário um código que lhe diga "eticamente" o que é correto ou "aceitável" e que, ao fazê-lo, nos evidencia o ponto crítico onde estamos, em que a secura de ética individual é extrema ou esta é limitada, amordaçada até, pela ética coletiva, escrita e fundida com a moral, tantas vezes limitante de novas idéias.

Manoel Guedes de Almeida,Acadêmico de Medicina, Faculdade de Ciências Médicas de Santos, Santos-SP.