terça-feira, 23 de setembro de 2008

Liberdade Médica em risco

Por: José Antônio de Lima*
Fonte: Correio Braziliense, edição de 21 de setembro de 2008.

Nos dias atuais, em que o sistema de saúde do país já sofre com inúmeros e sérios problemas, setores do poder público vêm atuando de forma a levar a assistência à saúde a verdadeiro colapso, colocando em risco a lógica de funcionamento do sistema e, conseqüentemente, milhões de pacientes, médicos, hospitais e profissionais da área da saúde. A novidade diz respeito a fiscalização dirigida que o Ministério do Trabalho está promovendo em estabelecimentos hospitalares de todo o país. Durante as fiscalizações os agentes, de forma praticamente padronizada, solicitam aos hospitais nomes dos médicos que atuam ou atuaram em suas dependências ou com os quais mantêm ou mantiveram algum relacionamento. A seguir, sem ouvir qualquer das partes e sem maiores diligências, promovem a autuação dos hospitais, alegando que eles deveriam assinar a carteira de trabalho dos médicos, que seriam, na ótica da fiscalização, empregados dos hospitais.

Ocorre que, como é sabido e foi assim desde o início dos tempos, os médicos em regra não são empregados de hospitais, mas profissionais liberais e autônomos que assim exercem a medicina, atendendo seus pacientes, de forma individual ou organizados em pessoas jurídicas, tais como clínicas, cooperativas ou sociedades médicas. Nessas circunstâncias, não há relação de emprego, já que os ditos profissionais, além de não possuir subordinação em relação aos hospitais, não recebem remuneração ou honorários dos hospitais, mas de seus pacientes (clientes) ou dos Planos de Saúde e Seguradoras, com os quais ele ou a pessoa jurídica que integra mantêm convênios. Exercem com plena autonomia e liberdade a medicina, atuando simultaneamente em vários hospitais, públicos ou privados, e em consultórios ou clínicas particulares.

O corpo clínico de um hospital não se confunde com quadro de médicos-empregados O Corpo Clínico é o conjunto de médicos de uma instituição com a incumbência de prestar assistência aos pacientes que a procuram, gozando de autonomia profissional, técnica, científica, política e cultural (Resolução CFM 1.481/97). Mesmo com todo o avanço tecnológico, os hospitais não exercem a medicina,. Não poderia ser diferente, pois não examinam, não fazem o diagnóstico, não elaboram as receitas, não prescrevem a internação, não operam, não atestam quadros clínicos e não dão alta aos pacientes. Igualmente, não cuidam da administração de planos, seguros assistenciais.
Assim, estabelecimentos de saúde, médicos e empresas operadoras de planos/seguros de assistência à saúde exercem atividades distintas, autônomas e independentes embora compatíveis e harmônicas, concorrendo de forma organizada para uma finalidade comum a todos: o bom atendimento ao paciente. Pensar o contrário seria o mesmo que concluir que ícones da medicina, tais como Pitanguy e Zerbini, foram empregados do hospital tal ou qual apenas por ali atenderem ou operarem seus pacientes. Dessa forma, apesar de existir a figura do médico-empregado, ela é a exceção e não pode ser transformada em regra ou mesmo ser imposta por setores do poder público.

Primeiramente, porque tal conduta atentaria contra sagrados preceitos constitucionais que asseguram a liberdade do cidadão para o exercício da profissão, da atividade econômica e para se unir a outros com objetivos comuns, organizando-se como pessoa jurídica. Em segundo lugar, porque tal prática, além de arbitrária, significaria um verdadeiro caos no sistema de saúde do país.

Ademais, nessa situação absurda os médicos ficariam privados de seus honorários que pertenceriam aos hospitais. Como é notório, a relação empregatícia traz consigo pesados ônus de natureza fiscal e trabalhista, estimado hoje em mais de 100% daquilo que o empregado recebe como salário. Portanto, se tal ônus for indevidamente imposto à relação médico-hospitalar, ou o paciente pagará o dobro pelo atendimento, ou o médico, os hospitais e os planos de saúde receberão apenas a metade, sendo certo que todos serão levados à inviabilidade, já que hoje atuam com uma já apertada margem de operação. Mesmo os hospitais públicos, filantrópicos ou ligados ao SUS, que atualmente já se encontram em situação alarmante, não estarão livres, uma vez que terão que suportar pesados encargos, que, na prática, inviabilizam suas atividades e isso sem falar no passivo monstruoso relativo ao período pretérito à fiscalização.

O fato é um só: a liberdade médica se encontra em risco e o efeito disso é uma profunda alteração do modelo de saúde do país, com pesados e indevidos ônus na assistência à saúde. Portanto, a sociedade há de estar atenta e vigilante, já que se pretende impor a ela mais esse insuportável ônus que trará consigo, ainda, verdadeira balbúrdia e desorganização do sistema, tudo com prejuízos incalculáveis para a qualidade da medicina e da saúde de nosso país. Posto isso, resta apenas uma indagação. A quem interessa a sublevação da organização médica existente?

* José Antônio de Lima é médico, presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp).

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Humanizar o SUS é humanizar o Brasil Artigo

Por: Dário Frederico Pasche
texto publicado no jornal Correio Braziliense 15/9/2008

Enfermeiro, doutor em saúde coletiva, coordenador da Política Nacional de Humanização da Atenção e da Gestão do SUS (HumanizaSUS)

Em artigo publicado no Correio Braziliense na última quinta-feira, (“Humanizar o SUS ou humanizar o Brasil?”) o médico e professor da UnB Dioclécio Campos Jr. apresenta uma série de críticas ao atual estágio do Sistema Único de Saúde e, em especial, à Política Nacional de Humanização da Atenção e da Gestão do SUS (HumanizaSUS), às quais não podemos deixar de contra-argumentar.

Considerando a complexidade do tema, nos parece uma exigência política resgatar algumas reflexões elementares das quais o texto não se nutriu. Além disso, o profundo desconhecimento do que seja a Política Nacional de Humanização, uma recente conquista do SUS, aponta para a necessidade de fazer conhecer seus predicados ético-políticos e metodológicos.

Sejamos críticos, mas generosos. Essa tem sido uma recomendação de prudência aos que se dedicam à análise das políticas públicas no campo da proteção social. Críticos porque as realizações são sempre aquém daquilo que se almejava; generosos por reconhecer que se avançou, que se superou ao menos em parte a realidade que desafiava, que se confrontava com os patamares éticos estabelecidos pela sociedade brasileira no que tange àquilo que seja produzir saúde.

Mesmo os críticos mais contundentes têm apontado avanços nos SUS. Poderíamos citar muitos desses avanços, mas um em especial tem sido apontado como marca incontestável da reforma sanitária brasileira: a construção ético-política de que a saúde é um direito inalienável de cada um, esteio sem o qual qualquer luta pela eqüidade e inclusão a serviços e práticas integrais seria uma luta inglória.

Mas isso nos força a perguntar se o predicado discursivo, uma vez anunciado, toma de imediato força de realidade? Nem os mais levianos seriam capazes dessa afirmação. A dinâmica do jogo das políticas públicas, em uma sociedades de classes, nos remete de imediato à constatação de que a conquista e consolidação de um política pública como o SUS é uma constante e ininterrupta luta.

A Política Nacional de Humanização da Gestão e da Atenção do SUS, criada em 2003, reconhece os avanços e os desafios do Sistema Único de Saúde. Mas não parte da negatividade, senão o contrário: identifica nas próprias realizações de trabalhadores e gestores do SUS elementos para o enfrentamento e superação de dificuldades que ainda povoam o SUS. Assim, o HumanizaSUS é uma política de reencantamento do concreto, de valorização da capacidade de criar, de superar, de avançar mesmo considerando um leque de dificuldades e carências.

O HumanizaSUS não é uma política prescritiva. Assim como o SUS, sua enunciação não tem o poder de, imediatamente, mudar realidades. Se assim fosse, bastaria dizer: “Humanizemos” e, num passe de mágica, o mundo mudaria. A Política Nacional de Humanização tem, sim, a força de um imperativo ético: aponta para a necessidade de reposicionar a organização dos serviços, as ofertas de cuidado e os processos de trabalho sem desprezar aquilo que, na medicina moderna, tomou-se como secundário ou menor: as formas de relação entre os sujeitos.

As perguntas que nos desafiam estão ligadas ao “como fazer”. Como reposicionar sujeitos na relação do cuidado e da gestão do trabalho em saúde? Como superar relações tão hierarquizadas e autoritárias que quase impedem a comunicação entre as pessoas? Como construir contratos terapêuticos que se apresentem como construção de co-responsabilização pelo cuidado? Todas essas perguntas têm um único foco: as relações de poder que se estabelecem entre gestores, trabalhadores, usuários e sua rede social.

Assim, a Política Nacional de Humanização não é uma oferta piegas e inocente, senão uma aposta radical na capacidade da produção, no âmbito da saúde, de novas relações. Relações propiciadoras de novos marcos ético-políticos para a realização do encontro usuário-trabalhador e trabalhador-gestor, entre tantos outros encontros. Essa é a nossa aposta.

A Política Nacional de Humanização, grosso modo, se apresenta como uma oferta metodológica. Ela é um modo de fazer mudanças na saúde cuja premissa é a inclusão. Considera que as mudanças no processo de produção de saúde são tarefas para os homens e mulheres que estão em relação no cotidiano das práticas. Busca incluir o outro, incorporando a diferença e a perturbação que a inclusão dos sujeitos produz na gestão e nas formas do cuidado. Incluir para co-produzir novos modos de gerir e novos modos de cuidar. Incluir para produzir mais e melhor saúde.

Temos adotado como diretrizes o acolhimento, a ampliação da clínica, a gestão compartilhada, entre outros. Dessas diretrizes, parte uma série de dispositivos que permitem operar a humanização na realidade concreta. Muitos serviços de saúde Brasil afora têm adotado essa política como orientação para reconstruir práticas de gestão e de modos de cuidar. Os efeitos dessa opção têm permitido mudanças importantes no trabalho em saúde, recompondo a aliança ética de defesa da vida entre gestores, trabalhadores e usuários.

O SUS é uma política civilizatória, já nos apontava Sérgio Arouca. Conquista do SUS, a Política Nacional de Humanização, reconhecendo a força e a capacidade de criação dos sujeitos e a possibilidade de construir ações e projetos comuns, tem oferecido sua parcela de contribuição na construção coletiva de um país a cada dia mais civilizado.

(leia tb o artigo Humanizar o SUS ou Humanizar o Brasil no post abaixo)

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Eu acredito no SUS!!!!

Autor: Eduardo Santana - Vice-presidente da Federação Nacional dos Médicos (FENAM)
Como muitos milhares de brasileiros, sinto-me pai ou avô dos SUS e, concomitantemente, um dos responsáveis por ele. É, sem dúvida alguma, o maior instrumento de inclusão social que o mundo experimentou no século passado. Enquanto humanidade teremos que nos esforçar muito para superá-lo. Mas, não podemos nos negar a ver o que tem sido feito no país em nome do SUS, nos últimos tempos.Esse que nasce como um grande instrumento de inclusão social tem sido gerido como instrumento de exclusão quando dificulta o acesso do cidadão e da cidadã aos seus serviços, quando impede que profissionais qualificados possam exercer eticamente suas profissões e quando se transforma em instrumento de dor social, individual ou coletiva.
EU ACREDITO NO SUS!
Então, por que estamos aqui? Creio que muitos caminhos poderemos apontar para justificar aonde chegamos, mas, alguns deles, têm prioridades em nossas análises. Um deles, por exemplo, tem sido apregoado pelos responsáveis pela viabilização do sistema como o grande vilão da história. A falta de um modelo de gestão que seja ágil, que possa cumprir metas, que seja capaz de valorizar profissionais e que disponibilize assistência qualificada conforme a necessidade do cidadão. E, sendo isso verdade, a resposta para todos os males do SUS parece ser apenas uma: a milagrosa.
FUNDAÇÃO PÚBLICA DE DIREITO PRIVADO.EU ACREDITO NO SUS!
Assim, o problema todo é que não se pode demitir funcionários conforme o interesse dos gestores; o problema é que colocar o sistema sob a guarda de leis de licitação pública o enrijece; o problema é que ter que fazer concurso para ter acesso ao serviço público dá muito trabalho para o processo de contratação; o problema é que ter que respeitar a lei de responsabilidade fiscal impede que se faça o aporte dos recursos necessários...Logo, vamos à mudança de modelo de gestão, vamos à FUNDAÇÃO PÚBLICA DE DIREITO PRIVADO! EU ACREDITO NO SUS!
Trazer para dentro do setor público as regras do setor privado! Muito interessante, afinal os trabalhadores públicos tem muitos privilégios e precisam perdê-los. É preciso flexibilizar a gestão de pessoal para diminuir o peso do Estado. Aliás, para alguns, seria muito bom se o Estado deixasse de existir. Se ele não tivesse compromisso e nem responsabilidade para com ninguém. Se morássemos todos dentro de uma grande empresa.
EU ACREDITO NO SUS!
Onde esse sistema nos leva? O caminho é um só: o da privatização dos instrumentos e ações de saúde no país onde os avanços das regras de gestão se darão principalmente no que tange aos trabalhadores; no qual setores conservadores e “estatofobos”, onde a palavra saúde deveria ser grafada assim: $aúde!
EU ACREDITO NO SUS!
Não acredito no SUS por seu potencial, pelo que já é capaz de realizar ou já realizou, mesmo sabendo que isso já seria o bastante. Acredito nele por sua origem. O SUS não é um presente de governo ou de partido político algum, não é uma concessão de ninguém. É uma grande conquista de toda a sociedade brasileira. Cada cidadão, de alguma forma participou da sua conquista e o merece funcionando conforme suas reais necessidades deles.
EU ACREDITO NO SUS!
Sendo assim, não posso concordar que temos problema de modelo de gestão. E sabido que o Estado brasileiro tem regras de gestão extremamente atuais, capazes de proporcionar ações que qualifiquem a gestão pública de um país bem como propiciem a cada cidadão e cidadã serviços de ótima qualidade.Sendo isso verdade, quais os caminhos que trilhamos e nos levaram a esse momento de exclusão?
EU ACREDITO NO SUS!
Creio que trilhamos dois dos piores caminhos de um serviço público, a saber: a falta de uma POLÍTICA DE FINANCIAMENTO que seja capaz de atender as necessidades do sistema e a falta de uma POLÍTICA DE RECURSOS HUMANOS capaz de disponibilizar profissionais qualificados e motivados a população.
EU ACREDITO NO SUS!
Bem, creio que começamos agora a acertar no diagnóstico. Passamos a caminhar melhor os caminhos da terapêutica e buscar o fortalecimento desse importante instrumento social.
POLÍTICA DE FINANCIAMENTO
Quando o povo brasileiro conquistou o SUS ele deveria ter financiamento tríplice, de igual responsabilidade, sem nenhum nível de hierarquização quanto a esse quesito. União, Estados e Municípios brasileiros deveriam viabilizá-lo economicamente.Definiu-se, à época, que seu financiamento deveria ser o equivalente, no mínimo, a 30 % do financiamento da seguridade social. Se isso acontecesse, no ano de 2007 só a União deveria ter viabilizado cerca de R$100.000.000.000,00 para o SUS. Ela não conseguiu a metade disso. Todo o financiamento - União, Estados e Município – não foi superior a R$95.000.000.000,00.Assim, não tem sistema de saúde que dê certo.
EU ACREDITO NO SUS! POLÍTICA DE RECURSOS HUMANOS
Com o avanço do tempo e da necessidade de atenção pela população brasileira, consciente de seus direitos, cobrando em todos os canais possíveis sua atenção à saúde, serviços de saúde foram sendo criados e disponibilizados à população sem nenhum planejamento de disponibilização de profissionais para sua execução. O resultado foi a maior precarização de relações de trabalho que já se tomou conhecimento no serviço público no país. Podemos citar, sem medo de errar, que, por exemplo, nunca se precarizou tanto o trabalho médico. Ações como essa também passaram a excluir os trabalhadores do sistema, empurrando-os para fora para poderem melhor ser valorizados, apesar de buscar inúmeras formas de resistência para se manterem dentro do SUS. Manter em respeito à população que o conquistou.Falta de reconhecimentos profissionais, falta de PCCS - Planos de Cargos. Carreiras e Salários, falta de condições dignas de trabalho. Assim, quero aqui fazer a minha defesa do SUS. O SUS que nós, os brasileiros, conquistamos e escrevemos na Constituição Brasileira.
EU ACREDITO NO SUS!
O SUS do respeito aos trabalhadores e aos usuários, o da inclusão, o da assistência ética, o que nos propicia a atenção integral à saúde. O sistema que onde os que lá trabalham tenham presente e futuro e os que dele precisam tenham necessidades atendidasNosso problema não é modelo de gestão.É modelo de gestor!
EU ACREDITO NO SUS!

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Humanizar o SUS ou humanizar o Brasil?

Texto retirado do jornal "Correio Braziliense" do dia 04/09/08
Autor: Dr. Dioclécio Campos Júnior*


A melhor maneira de humanizar o SUS é fazer com que os gestores públicos utilizem somente os serviços que oferecem à população. Seria uma lição de coerência, conduta ética exemplar. Evitaria a ambivalência do discurso oficial e acabaria com a contradição ideológica das teses defendidas.

De fato, por questão de coerência, os dirigentes do SUS não deveriam recorrer a planos privados de saúde para si mesmos nem para os seus. Só assim estariam a demonstrar que acreditam na qualidade da assistência à saúde que propõem para os outros. Conheceriam de perto a realidade que lhes cumpre transformar. Não mofariam nos gabinetes sem vida de onde apenas ditam regras. Não se acomodariam ao metabolismo anacrônico de repartições públicas que transbordam teoria e carecem de prática. Estariam no dia-a-dia dos serviços dispensados a seres humanos cujas penúrias e frustrações desconhecem. Validariam, enfim, argumentos doutrinários, sempre vazios de vivência, distantes do real, repetidos com a monotonia que beira a exaustão. Não se fixariam na frieza de indicadores quantitativos por meio dos quais celebram avanços discutíveis.

Uma coisa é o SUS dos gestores, outra é a assistência prestada às pessoas. A primeira é produto de uma ideologia cheia de boas intenções, apanágio não apenas do céu, porque delas o inferno também vive cheio. Reúne princípios e crenças oriundos de catecismo sanitário, resguardado como fonte dogmática a moldar pensamentos e ações. Possui idioma próprio, uma coletânea de jargões declinados de cor e salteado por loquazes militantes. Expressões conceituais já surradas pelo uso, desgastadas pela inadequação à realidade, destoantes dos matizes evolutivos de uma sociedade em transformação. A segunda é resultado do constante desencontro entre cenários, paradigmas, regulações, tantas outras normas técnicas, e as necessidades verdadeiramente sentidas pela população.

A rede de unidades públicas de saúde mais parece uma franquia da incompetência institucional. Quem nelas trabalha ou delas se serve está nivelado no mais profundo desencanto. A falta de recursos mínimos para o exercício profissional seguro tem a mesma dimensão do sofrimento dos cidadãos diante das dificuldades de acesso à assistência qualificada que lhes resolva os problemas de saúde. O sanitarismo reducionista impregnou as instâncias do poder. É desumano. Discrimina. Ignora a realidade. Simplifica a aparência do continente para ocultar a fragilidade do conteúdo. Recusa-se a discutir o modelo desagregador da saúde pública, cuja eficiência já não convence mais ninguém. Teóricos ensimesmados tomaram conta do SUS. Rejeitam qualquer perspectiva de modernização.

Sucedem-se as estratégias, mudam os governos, renovam-se os quadros, mas os equívocos continuam. Os usuários reclamam, as tragédias assistenciais repetem-se, as epidemias arrasam, os doentes morrem nas filas, faltam profissionais, os hospitais públicos entram em colapso. As justificativas oficiais não saem do escapismo. Ora é o povo que abusa da assistência, a indústria de equipamentos que transgride normas, ora a gestão que deixa a desejar. O modelo segue, porém, intocável, flutuando soberano e vazio nas vagas revoltas do caos.

A bola da vez é a humanização. O SUS deixou de ser obra humana e os usuários são assistidos por animais de outra espécie. Há que humanizá-los. É a onda mistificadora do momento. Um engodo para disfarçar as precariedades da saúde pública. Um biombo destinado a impedir que se veja a fotografia do descaso, nas cores reais da irresponsabilidade gerencial.

A preconizada humanização do atendimento à saúde do povo pobre é um misto de ingenuidade e faz-de-conta. Ignora o pensamento lógico de Paulo Freire, segundo o qual não se modifica o todo pela mudança de algumas de suas partes. Ou se muda o todo ou não se muda nada. Ora, o SUS é parte de um todo chamado Brasil. Não passa de ingenuidade acreditar que a sociedade brasileira seja menos desumana que o SUS. Ou, ainda, que a humanização da assistência à saúde humanizará o país. Se toda a população residisse em moradias adequadas, trabalhasse em atividades dignificantes, recebesse salários de gente e não de indigente, tivesse acesso à educação humanista, contasse com uma justiça eficaz, desfrutasse de espaços urbanos fraternos e igualitários, o SUS teria as mesmas virtudes humanas da sociedade. Logo, o que urge humanizar não é o atendimento à saúde, mas a condição de vida dos atendidos. Uma questão de escolha: humanizar o SUS ou humanizar o Brasil?

*Presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, Doutor em Pediatria e professor titular da Universidade de Brasília