sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Médico do setor público é um folgado

Assustou, né? O título foi só para chamar a sua atenção e fazer você ler esse artigo até o final...

O exercício profissional na área da saúde é desgastante. Na ponta do sistema está o médico, com sua dedicação, responsabilidade social e ética. Da prática médica cotidiana, advém os desgastes naturais, o estresse, o cansaço físico e psíquico. Comparando a prática médica do consultório particular com àquela exercida no setor público, percebo que no setor público o médico desgasta mais. Ora, mas se os doentes são os mesmos, os princípios que regem a prática médica são os mesmos, a carga horária do setor público é às vezes até menor, por que o setor público causa maior impacto negativo sobre a vida dos médicos?

Para tentar responder esta pergunta, convido o leitor a fazer uma breve reflexão.

Temos visto que o orçamento destinado ao financiamento do setor saúde é insuficiente. Ora, em qualquer lugar em que a receita é menor que a despesa, o papel de quem gerencia é equalizar estes indicadores chamados receita e despesa. Ou você aumenta a receita ou diminui despesa. Não tem outra fórmula. Qual destes indicadores é imutável? Resposta: a receita. O gestor tem seu orçamento votado por uma comissão que, após abatidos os desvios da corrupção, obtém-se a receita líquida para gastar com o setor. Esta receita não sofre incrementos ao longo do ano. Vota-se um orçamento e acabou, não há suplementos, pelo menos é o que dizem. O gestor tem que se virar com aquela receita. Se a receita é imutável e insuficiente, a única saída é mexer na despesa. E como o gestor público mexe na despesa?

1. Pagando maus salários aos médicos.

2. Exigindo maior empenho e maior resolutividade do médico, estendendo jornadas e ou número de atendimentos sem querer pagar mais por isto.

3. Burocratizando os pedidos de exames complementares e disponibilizando pouco volume para realização dos mesmos. Intermináveis tarefas de preenchimentos com a necessidade de um formulário para cada exame complementar, gerando dispêndio de tempo e alto custo em papéis. O formulário para solicitação de exames bioquímicos é um bom exemplo. Como se não bastasse, a relação de exames contidos no formulário está totalmente fora de ordem alfabética, gerando mais desgaste para o médico à procura do exame desejado. É comum depararmos com informações solicitadas nos formulários que entendemos serem desnecessárias à confecção dos exames, por exemplo: nome da mãe do usuário, ponto de referência da residência, código do IBGE , CNES, CPF e matrícula do médico solicitante, número da notificação SINAN, história clínica do paciente com hipótese diagnóstica e CID10. Com isto cria-se uma demanda reprimida que obriga o usuário a esperar demasiadamente. Sinto que esta prática visa à geração de um menor número de procedimentos complementares, pela dificuldade de preencher formulários. Com isto poupam-se investimentos. Há exames em que o paciente não pode esperar.

4. Dificultar o acesso à consulta de especialidade. Com isto diminui a necessidade de mais contratações de especialistas. Isto gera também demanda reprimida e o paciente ou contenta com o parecer e tratamento de um generalista ou por seus próprios meios consulta um especialista particulóide (consulta de especialidade com encaminhamento proveniente do SUS – a chamada consulta social).

5. Dispensação defectiva de medicamentos. Num momento, na farmácia básica, falta anticoncepcionais, noutro hipoglicemiante oral, noutro antihipertensivo e assim sucessivamente. Este rodízio de faltas dilui-se as queixas, gerando um menor desgaste para o setor público e o usuário acaba ficando sem o medicamento ou comprando, com o argumento de que as faltas são temporárias e não custa nada fazer um certo esforço e comprá-las. Isto gera algumas economias aqui e acolá.

6. Manutenção e materiais de limpeza e higiene. A Vigilância Sanitária faz vista grossa quanto à higiene e a limpeza, os setores responsáveis cobram e o gestor manda o que tem. Se é suficiente, bem; se não, fica sem. Onde já se viu um Posto de Saúde sem um filtro de água? E tem muitos Postos sem...

7.Registro eletrônico de consultas em um programa de computador obsoleto. Com registros que servem muito mais como contador do número de atendimentos do que para pesquisa de indicadores. Qual a conseqüência direta disto? De um lado um programa quase inexequível e de outro um sumário boicote ao registro por parte de quem de direito deveria preencher os espaçozinhos em branco do prontuário eletrônico. De tal forma que, quem quer que seja, ao fazer uma pesquisa das consultas anteriores de qualquer paciente, vai encontrar verdadeiros absurdos. Isto gera entraves éticos gravíssimos e não contribui como base de dados para estratégias de prevenção de campanhas. O programa não recebe investimentos e anos após anos não consegue processar o quantitativo de informações existentes. Sem contar que existem dias em que é impossível assentar qualquer informação neste prontuário e tudo tem que ser feito à mão.

8. Não existe um Programa de Valorização do profissional de saúde. Não há um programa de humanização e conscientização do serviço. Isso geraria despesas, pois necessitaria contratar pessoal qualificado para tal e o objetivo é economizar. Os espaços na hierarquização do organograma dentro da Secretaria de Saúde vão sendo ocupados por pessoal sem conhecimento técnico, que nomeia ou promove servidores sem qualificação técnica para o exercício da função. São funcionários extremamente esforçados, eficientes e eficazes naquilo que incumbiram de fazer. Confeccionam protocolos esdrúxulos e batem o carimbo: CUMPRA-SE, transferindo para a ponta do sistema, obrigações que geram mais insatisfações e tensão. Não estão interessados na qualidade do serviço médico. Aliás, quanto mais questionável for a qualidade do trabalho médico, mais confortável fica para que enfermeiros, nutricionistas, assistentes sociais, psicólogos e outros, mostrem suas respectivas importâncias nesta cadeia hierárquica. Não é incomum vermos pessoal de outras áreas realizando atos médicos. O pessoal com conhecimento de Medicina Coletiva, os chamados sanitaristas são peças raras no sistema.

Esses fatores são os mais importantes na construção de um desgaste quase instransponível na vida de um médico do sistema público. Na tentativa de minimizar este desgaste, o médico tenta diminuir sua angústia, acreditando que entrando para o sistema público ele terá um complemento de renda sem a necessidade de empenho. Ledo engano. O médico está entrando numa cilada. Quanto maior é seu descompromisso com o serviço público, mais vulnerável se torna frente às questões éticas. Quanto maior for a sua omissão, mais espaço vai surgindo para os aproveitadores desqualificados ocuparem. Quanto mais superficial você se torna e menos tempo gasta, no atendimento aos usuários, mais o gestor entende que você está ocioso. E como se não bastasse, o discurso administrativo é aconselhador: “o médico tem que parar de achar que o serviço público é subemprego, bico...!”

Assim como muitos, eu acredito que não é bico, que não é subemprego. Mas então respeite-nos, valorize-nos e não nos roube a dignidade. Não nos empurre goela abaixo uma tarefa impossível de ser cumprida.

Gestor público, exija mais empenho, mais dedicação, mais qualidade... mas faça a sua parte!


Fonte : Dr. Neudes Ribeiro

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